“Portas de saídas”: Um debate sobre visões paradigmáticas da Assistência Social

Introdução:
Esse texto é uma versão surgida com base na discussão de um curso sobre Inclusão Produtiva. O objetivo do texto é apresentar o conceito de porta de saída e debates que visões sobre o papel da assistência social, como política pública, têm sobre esse conceito. Apresenta-se duas visões uma tradicional que pensa a ação de assistência dentro de preceitos como responsabilidade e prazo. E, uma visão contemporânea, ainda em processo de consolidação, que entende a Assistência como direito e não norteia a porta de saída como uma de seus nortes. Importante destacar que nesse sentido atual a porta de saída tem duas concepções: uma que nasce do usuário, pois respeita seus tempos e momentos para sua autonomia e seu protagonismo; outra que a porta de saída da assistência demanda porta de entradas em outras políticas.
Para responder à primeira concepção, é necessário prezar no ambiente da Assistência por um ambiente socioeducativo que possibilite aos usuários dos serviços de Assistência Social criarem condições próprias para traçarem suas histórias de forma autônoma fundamentadas em princípios da Economia Solidária. Essa visão rompe, assim como faz a Política Nacional de Assistência Social, com relações desvalorizadoras e subalternizadoras desses sujeitos atendidos pela política de assistência. Esse rompimento permite demarcar o princípio da não responsabilização dos usuários da política pelas vicissitudes e mazelas frutos do capitalismo. Ou seja, em consonância com essa Política, pensamos que a busca por portas de saída ocorrerá como processo possível e coordenado, mas não como fim dos serviços de assistência.
Importante, dessa forma, é discorrer sobre ideias relacionados ao trabalho socioeducativo e a solidariedade. Dessa forma, temas como o exercício da cidadania, a apropriação do território e a operacionalização das atividades de forma cooperada são preocupações que auxiliam essa compreensão.
Ao aproximar essas ideias deixamos em suspenso processos individualizadores e partimos da compreensão de que a realização de dimensões comunitárias, portanto coletivas, potencializam as estratégias de autonomização e protagonismos das pessoas. Isso é um contraponto para as tradicionais maneiras de ver a população atendida pela política de assistência, já que ela tem como marca ser massa de manobra de políticos que usam os direitos como favores por interesse de manipulação e dominação. A oposição se dá justamente na compreensão dos usuários como portadores de direitos e para que isso seja garantido, dentre outras maneiras, é necessário um movimento coletivo de pertencimento a um grupo social.
O texto, enfrentando essas questões apontadas, está estruturado de uma maneira que no primeiro momento apresenta a visão comum sobre as portas de saída que é vista em parcelas da sociedade, ainda mais quando tratamos da questão da Assistência Social. Em contraponto a essa visão comum, apresentamos conceitos que devem ser consolidados na prática da Assistência Social, principalmente nesse momento histórico. Esse debate é importante, pois a compreensão sobre a porta de saída é um tema importante na política pública de Assistência Social[1]. Por sua vez, não pretendemos esgotar esse tema aqui, mesmo porque é uma temática que ainda está em fase de consolidação teórica e prática. Objetivamos, portanto, e na forma de ensaio, trabalhar concepções de porta de saída na visão atual da assistência.
1) Portas de saída? Apresentando o senso comum
A ação da Assistência Social é definida por sua lei orgânica para “aqueles que dela necessitarem” (Brasil, 1993). No Brasil essa condição pode ser traduzida para “aqueles cidadãos que se encontram fora dos canais correntes de proteção pública: o trabalho, os serviços sociais públicos e as redes socioassistenciais” (Couto, Yazbek e Raichellis. In: Couto et alli, 2010, p. 46).
Dessa forma, podemos aventar que o número de usuários da Assistência pode aumentar na medida em que crises econômicas e das novas formas de relações de trabalho aconteçam. Assim, para além de saber o lugar da assistência social como política pública e social, é necessário conhecer qual é a visão dos financiadores dessa política? Ou seja, a visão da classe empregada que é aquela que paga a conta para os demais. Chamaremos essa visão de senso comum, já que ela pode ser espraiada para diferentes setores da sociedade, principalmente àqueles que não dependem de serviços prestado pelo Estado.
Nessa forma de ver, questionamentos sobre quando acontecerá a saída dos usuários da política de assistência é algo usual na sociedade. Ou seja, nessa visão, a Assistência deve ser algo pontual e temporário. Para a resposta a esses questionamentos dois caminhos vêm à mente: um primeiro está associado à ideia de que as pessoas usuárias da assistência vivem com dinheiro alheio, ou seja, o dinheiro do contribuinte transferido ao Estado. Outra resposta tem relação com um imaginado desapego dessas pessoas usuárias do serviço de Assistência à condição de trabalho. Assentada nessas duas respostas está uma prática nociva, na visão dos contrários à consolidação de uma política de assistência, já que ela serve para acostumar e em certo sentido recompensar o que é visto como o “vício de não gostar de trabalhar”, de não “querer progredir na vida”. Consideremos ou não este julgamento como um preconceito, o fato é que ele é o julgamento fundador da preocupação com a “porta de saída” para os programas da Assistência Social. Em outras palavras, viver com o dinheiro alheio é uma solução conveniente para quem não gosta de trabalhar e isso acontece em parcela dos usuários da Assistência. Ambas as respostas explicadas parecem constituir uma sentença moral proclamada em nome da “sociedade”: a de que o Estado não sustente pessoas que se entregam à dependência e que se acomodam com a vida que têm[1].
O fato é que a preocupação com a “porta de saída” opera e reproduz uma sentença social sobre o valor dos indivíduos na sociedade e os porquês de suas vidas. Nessa perspectiva moralista, para que a vida de alguém tenha valor e mereça ser incentivada sem maiores preocupações, é preciso que a pessoa demonstre ter incorporado a crença na busca por um futuro melhor. Entretanto, por que a “boa vida” é definida por referência ao tempo e à busca do futuro?
Para essa resposta necessitamos compreender relações estabelecidas pela identidade e o pertencimento das pessoas. Com o advento da modernidade, a identidade passou a ser profundamente modelada pelo trabalho. Ou seja, as pessoas passaram a ser o que elas fazem. Concepções como carreira e vocação são elementos constituintes dessa relação. Por sua vez, o ato de construir uma carreira é um exercício crescente de individualização e atomização. Nessa concepção, dispor de um futuro é ter um valor referente à identidade individual e pessoal desdobrado no tempo. Não dispor de um futuro é possuir uma vida que não merece ser incentivada e muito menos protegida. O que se espera de pessoas que não tenham essa condição é que não terão outro comportamento quando tratam do futuro comum, ou de sua comunidade, ou do seu próprio país.
Concluindo e voltando à preocupação com a “porta de saída”: o que parece estar em jogo nessa concepção que foi trabalhada é a diferenciação entre os que têm e os que não têm futuro. O usuário que não comprova ambicionar desenvolver-se na vida, assina a sentença de sua própria condenação, qual seja: sua forma de vida que trata o futuro como mera reprodução do passado, serve para que ele seja identificado como alguém que não merece investimento, alguém que não se deve fazer viver e alguém que não participa do “futuro comum”.
2) Portas de saída? Re-discutindo o conceito sob a perspectiva cidadã
Incluímos a parte anterior, propositadamente, com o objetivo de apresentar a visão do senso comum que paira em nossa sociedade. Trabalhamos com temas relacionados à Assistência Social e, por isso, faz-se necessário que em diferentes momentos enfrentemos esse senso comum. Para tanto é salutar respaldar nossa atuação em visões consolidadas e embasadas em fundamentos apropriados. Portanto, discutir o papel da porta de saída em uma perspectiva cidadã é um contraponto necessário para o entendimento do que estamos falando.
Inicialmente, vale destacar que uma resposta possível aos argumentos anteriores está fundamentada na ideia de que a construção de um futuro tem seu início no presente. Portanto, consolidar bases seguras é o primeiro passo para iniciar um projeto futuro. Falamos isso, pois as políticas de assistência, mas não sozinhas, devem prezar pela garantia dessas seguranças[1]. Sem levar em conta as condições que produzem a falta de perspectiva de futuro, a preocupação com a “porta de saída” só nos leva a uma decisão: abandonar à sua própria sorte as pessoas excluídas do futuro que a sociedade mesmo produziu e produz. Essa percepção está fundamentada na ideia que a sociedade é desigual e as mazelas das pessoas não nascem, necessariamente, graças somente a elas próprias.
Dessa maneira, a ação de assistência garante em um primeiro momento seguranças que não podem ser vistas como uma ação com prazo de validade. Conciliada com essa compreensão de segurança, nasce a realização de uma ação socioeducativa que são práticas ativadoras de outra compreensão do papel por parte dos usuários desde a dimensão deles consigo próprios até deles com a sua sociedade. Portanto, e frisando pontos já discutidos em outros momentos, a ação da inclusão produtiva é um processo associado às seguranças promovidas pela política da Assistência Social, na medida em que permite aos usuários a compreensão do seu tempo e espaço e dá elementos para os tornarem sujeitos de sua própria história. Isso acontece com a indissociabilidade entre reflexão e prática. Essa dimensão permite identificar o homem com a sua própria ação, fazendo-se “homem-história” (cf. FREIRE, 2007). Freire (2007, p. 33) complementa citando que “na medida em que os homens, dentro de sua sociedade, vão respondendo aos desafios do mundo, vão temporalizando os espaços geográficos e vão fazendo história pela sua própria atividade criadora”. Assim, o homem para a compreensão do processo educativo somente pode entender ou explicar a si mesmo como um ser em relação com a realidade, seu tempo e seu espaço. Por sua vez, Freire aponta que isso só acontecerá pela compreensão da essência da realidade.
Além das dimensões do tempo e do espaço, como elementos para serem resignificados, é necessário buscar novos sentidos para as relações humanas construídas no interior dos serviços e nas ações da inclusão produtiva. Esta dimensão da realidade ocorre em constante diálogo e reconhecimento do outro. Essas passam pela relação educador e usuários, mas vai além na medida em que envolve a construção das relações entre os usuários. Recuperamos nesse sentido a conceituação de FRANÇA FILHO e LAVILLE (2004, p. 18) quando cita que
os grupos organizados desenvolvam uma dinâmica comunitária na elaboração das atividades econômicas, porém com vistas ao enfrentamento de problemas públicos mais gerais, que podem estar situados no âmbito da educação, cultura, meio ambiente, etc. Com isto, estamos sugerindo a ideia de que a economia solidária tem por vocação combinar uma dimensão comunitária (mais tradicional) com uma dimensão pública (mais moderna) na sua ação.
É muito importante se pensar em maneiras de construir e ampliar espaços que dinamizem e multipliquem as relações mútuas entre as várias experiências econômicas que integram a Socioeconomia Solidária. Tais espaços podem ser viabilizados por redes comunitárias que envolvam todos os atores da cadeia produtiva, considerando a produção, a comercialização, o financiamento, organizações populares e o consumo. Essa concepção está associada com a ideia de uma ação com foco no território.
Santos (1998) demonstra que não existe cidadania concreta que prescinda do componente territorial. Ou seja, segundo esse mesmo autor, o cidadão é indivíduo num lugar. Assim, pensar inicialmente a partir do local de vida dos envolvidos é um passo importante para a criação de raízes que fundamentaram as lógicas identitárias.
Apontamentos finais
Como apontamos o texto não teve a pretensão de esgotar essa temática. Por sua vez, procuramos aqui colocar em contradição duas visões distintas sobre o papel das políticas de assistência social no Brasil contemporâneo. Visões que estão assentadas em certos princípios relacionados à centralidade do trabalho e a identidade que isso gera. Como conclusão, gostaríamos de abordar a importância do profissional que atua com a temática da assistência tanto no nível estatal quanto nas organizações da sociedade.
Freire (1979) ensina que “o trabalhador social, ou o educador, precisa saber que, como homem, somente pode entender ou explicar a si mesmo como um ser em relação com esta realidade”. Desta forma, o educador é um agente de intervenção, contribuindo para a reflexão sobre a realidade, tem sua ação pautada na busca da mudança e da compreensão da realidade.
Bibliografia:
FREIRE, P. Educação e Mudança. 30° Ed., São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2007;
GADOTTI, M.; FREIRE, P.; GUIMARÃES, S. Pedagogia: diálogo e conflito. 7° Ed. São Paulo: Cortez Editora, 2006;
FRANÇA FILHO, Genauto, LAVILLE, Jean-Louis (orgs.). A economia solidária: uma perspectiva internacional. Porto Alegre. UFRGS. 2004
SANTOS, Milton. O Espaço do Cidadão. S.Paulo: Studio Nobel, 1998


[1] O uso da palavra seguranças no plural faz alusão à NOB/SUAS (2005) na medida em que envolve garantias em relação à segurança de acolhida, segurança social de renda, segurança de convívio, segurança de desenvolvimento da autonomia e a segurança de benefícios materiais ou em pecúnia.


[1] Essa moral tem um longo processo histórico para a sua explicação. Processo que tem associação com a forma ocidental de vida que é fundamentada principalmente no racionalismo. Junto a isso outros processos são constatados, como por exemplo o cristianismo. Não queremos com isso estabelecer uma relação causal, mas são processos contemporâneos. Para compreender ainda mais ver WEBER, Max. ....

[1] Prova disto pode ser vista nos debates promovidos pela Ministra de Assistência Social, bem como pela presidenta, que coloca a ação da inclusão produtiva como uma evolução do atual estágio da Assistência Social no Brasil.

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